Transferência e marketing: depoimentos de que, afinal?
- Jéssica Domingues
- 17 de abr.
- 2 min de leitura
Atualizado: há 6 dias
A psicanálise é uma prática que leva a sério a escuta, o inconsciente e a singularidade de cada sujeito. Mas por que isso impede que analistas publiquem depoimentos de pacientes em seus sites ou redes sociais? Este texto aborda os limites éticos da psicanálise, a transferência e o lugar do analista — refletindo sobre o que está em jogo quando se transforma um processo íntimo em propaganda.
A “validação social” e o marketing de depoimentos
Em tempos de redes sociais, é comum que profissionais - de todas as áreas - divulguem relatos de clientes como forma de validar seu trabalho. Qualquer vídeo de marketing no YouTube recomendará essa prática, chamando-a de “validação social”. Na psicanálise, porém, essa estratégia suscita questões éticas profundas sobre o lugar do analista e a natureza do processo terapêutico. Afinal, não se trata de uma clientela, mas de uma clínica. Temos pacientes — ou, como alguns preferem dizer, analisandos.
A ética da escuta psicanalítica
A experiência analítica não é um serviço com resultado garantido, nem uma promessa de transformação imediata. O que se constrói em análise é singular, fruto de um percurso que pertence àquele sujeito — e que não deve ser reduzido a um testemunho exemplar.
Não se trata apenas de respeitar o sigilo profissional. Trata-se também de preservar algo fundamental na relação analítica: a transferência.
A transferência
A transferência é uma ferramenta técnica essencial, e o que se diz nesse registro deve ser escutado com delicadeza e mantido no campo clínico. Palavras de reconhecimento ou afeto, ainda que sinceras, pertencem ao espaço da análise e não se prestam à publicidade. Retirá-las desse contexto seria romper o pacto implícito que sustenta a escuta psicanalítica — deslocando o foco do escutar para o ser visto.
Como disse Freud:
“A transferência constitui uma peça decisiva do processo analítico; é, ao mesmo tempo, o maior obstáculo e o mais poderoso dos instrumentos.”(Observações sobre o amor de transferência, 1915)
O que um paciente revela ao falar de seu analista? E mais ainda: o que se põe em jogo quando isso é dito em uma rede social? Por quanto tempo um depoimento permanece válido? Os afetos mudam, e essas mudanças, longe de serem ruídos no processo, são muitas vezes o que o movimenta.
Depoimentos como ruído ou desvio
As mudanças afetivas na transferência não são secundárias: elas têm potência clínica. Se no início Freud via a transferência como um obstáculo, o amadurecimento do método analítico revelou que escutá-la é parte essencial do processo. Publicar depoimentos de pacientes desconsidera essa dimensão — e pode, inclusive, desfigurar o lugar da análise.
Por isso, neste espaço, você não encontrará histórias contadas em nome de pacientes. Prefiro que o silêncio sobre esses testemunhos preserve o que eles carregam de íntimo, de inacabado e, justamente por isso, de verdadeiramente transformador.
Se algo aqui lhe ressoar, talvez a melhor pergunta não seja o que os outros dizem sobre a análise — mas o que em você deseja ser escutado.

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Oi, Jessica, achei muito interessante todo o seu texto! Muito bem referenciado, inclusive, trazendo a citação de Freud. Gostei da forma como você abordou as questões éticas envolvidas e também o questionamento, de "até quando o depoimento é válido?". A questão de todo vídeo sobre Marketing no YouTube recomendar a publicação de testemunhos, é real. Eu como profissional de Mídias Sociais concordo com isso, o fato é, essa prática não se aplica a todas as profissões e todas áreas de cuidado com o indivíduo! Por outro lado, existem práticas mais interessantes para a pessoa psicanalista realizar sua presença digital.