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Uso Abusivo de Telas Digitais: Impactos na Saúde Mental

  • Foto do escritor: Jéssica Domingues
    Jéssica Domingues
  • 1 de fev.
  • 6 min de leitura

Atualizado: há 6 dias

Esta fala foi apresentada em evento organizado pela Clínica Psicon de São Caetano do Sul em Dezembro de 2023.

Atenção: Este texto contém conteúdo sensível.


A série Black Mirror, disponível na Netflix, encena questionamentos – inicialmente hipotéticos – a respeito da presença da tecnologia na vida humana. No episódio “Hino Nacional” da primeira temporada, temos o primeiro ministro inglês em uma grande saia justa. A princesa que é nacionalmente querida e popular é sequestrada e o pedido de resgate é surpreendente. O primeiro ministro teria de ter relações sexuais com um porco e isso deveria ser transmitido em toda a televisão britânica. Já seria o suficiente para começarmos a pensar a respeito de relações políticas, organizações institucionais, valores morais e éticos, terrorismo e lá vai pedrada, mas hoje não é nisso que vamos focar a nossa atenção, hoje a nossa atenção vai para o desfecho dessa situação tão complexa e delicada.


Por fim, o primeiro ministro sede ao clamor popular e claro, do sequestrador e performa a relação sexual com o animal. Eis que sua assessora recebe uma ligação que informa que na verdade enquanto a performance era transmitida a princesa já havia sido solta. A assessora indaga então qual seria a motivação do sequestrador em fazer isso e recebe a seguinte resposta:


- Meu palpite... ele sabia que todos estariam ocupados na frente da TV.


Bum, uma bomba explode na frente de nossos olhos e com os fragmentos suspensos no ar escreve “Quando estou disponível para a tela a que estou disponível e onde não estou presente? Quantas princesas em minha vida foram soltas enquanto eu estava online?”. E por princesas aqui estou falando de acontecimentos desde os triviais aos mais significativos, de um pedido para comprar pão às primeiras palavras de um bebê. Quem será que deixamos off-line quando estamos online?


É inegável que a tecnologia nos conecta e que transformou nossa relação com o tempo e com o espaço, mas também transformou as nossas relações uns com os outros. Para algo melhor ou pior? Seria muito bom que as coisas se resolvessem dessa forma, o que é bom para um lado e o que é ruim para o outro, mas a gente sabe que não é por ai, né?


Em seu texto de 1930, O mal estar na civilização, Freud nos fala sobre como a cultura se modifica trazendo avanços tecnológicos e como isso nos afeta individual e socialmente, além de que o avanço tecnológico também cria novas necessidades, ele expõem, por exemplo, o advento do telefone dizendo que se a ferrovia não existisse o filho não estaria longe e que assim não precisaria do telefone para ouvir sua voz. Vemos que a mesma ferrovia que escoa alimento para distâncias antes impraticáveis, é a mesma que leva entes queridos para longe. Se fazemos frente as transformações caímos no idealismo nostálgico e nos impedimos de criarmos novas vivências, assim como se não nos questionarmos sobre os ditos avanços corremos o risco de atropelar o que há de mais humano em nós, o redundante, contato humano. 


Aposto que todos aqui nessa sala estão com os seus celulares encostados em seus corpos, eles viraram quase que uma prótese do que somos. Temos um oráculo ambulante onde levamos nossos questionamentos, curiosidades e por desatenção muitas vezes acabamos obedecendo a tirania de uma presença online que nos captura do contato olho no olho. O reconhecimento facial obriga a olhar diretamente para o olho que tudo vê, a câmera, enquanto nos vemos desobrigados a isso em nossos contatos pessoais.


E o que será que faz a gente tratar uma máquina como algo tão precious[1]? Nesse mesmo texto do Freud que eu falei agora há pouco, ele fala sobre três fontes de sofrimento humano que são: o corpo, o mundo externo e a relação com os outros humanos, assim como ele fala também da necessidade humana de se defender do sofrimento, mesmo que isso custe experiências prazerosas. A felicidade entra em uma barganha entre o evitamento de desprazer e a disponibilidade para o prazer. Para mim é válido pensar na hipótese de que o dispositivo de tela, seja ele o celular, o tablet, ipad, seja o que for, ele atende muito bem ao distanciamento de sofrimento, pois veja...


Vamos pensar primeiro sobre o corpo, o corpo não existe nas interações virtuais, o que temos é uma imagem editável que muitas vezes passa por filtros e programas de edição afim de que seja mais palatável esse encontro. Perdemos a imperfeições e por consequência, nossas particularidades. Nos anos 60 um artista chamado Andy Warhol fez uma crítica a respeito da esterilidade que a cópia fomenta, escancarando que a falta de autenticidade nos leva a uma linha de produção castradora da subjetividade. É isso que queremos para nós? Porque parece que é o que estamos fazendo 60 anos depois.


No mundo virtual nos desencarnamos, e passamos a ser uma espécie de holograma, a cabelo branco, a ruga, o buxinho saindo da calça, nada disso existe, a não ser que autorizemos essa existência, podemos decidir o que de nós existe ou não e vamos ficando cada vez menos expostos a imperfeição. Será que isso não vai influenciando e nos inclinando a uma falta tolerância e comparação ainda mais acirrada? Se tudo está perfeito lá como aqui não está?

A segunda fonte de sofrimento seria o mundo exterior, ou natureza, a depender da tradução. Nesse mundo fantástico que é o virtual nós decidimos o que é ou não real abrindo ou não a porta para que determinadas informações possam circular e nos acessar. O algoritmo é treinado por nós ao mesmo tempo que nos treina a consumir o mesmo teor de conteúdo formando uma masmorra solitária de concordância.


A internet poderia nos levar a mundos desconhecidos, exploraríamos como aventureiros as mais diversas perspectivas, isso se fosse possível por em jogo o nosso narcisismo. Já disseram que narciso acha feio o que não é espelho e dessa forma excluímos o não de nosso mundo virtual. O não inaugura o sim, sem o não o que temos é a concordância homogênea sem possibilidade de questionamento ou expansão.


Por fim, nossa maior fonte de sofrimento, segundo Freud, é a relação com os outros humanos. Duvido que alguém aqui não concorde. E esse é um dos pontos realmente mais desafiadores pois sem o outro quem somos nós? Foi preciso duas pessoas para que cada um de nós fosse concebido e tantas outras para que pudéssemos estar aqui hoje. Ao mesmo tempo quanta chatice e problema tivemos que suportar nesse caminho? Difícil mesmo e aí vem o dispositivo digital que nos promete aproximar quem nos interessa e afastar quem nos desagrada. Quer mundo melhor que esse? Agora eu posso bloquear, ficar off-line, falar coisas que eu não tinha coragem e tudo isso a qual custo? Cada um pode se interrogar a respeito de suas particularidades, mas o que podemos ressaltar como comum a todos é que estamos falando de um custo muito mais baixo do que ter que lidar com essas coisas no olho no olho. Quais serão as consequências disso?


A necessidade de negociar seja com o outro ou nós mesmos, nossas emoções e sentimentos foi drasticamente reduzida, se não há negociação o que resta é a imposição assim como aquela tal de economia da felicidade também é afetada. Como barganho com a frustração, com o desprazer se perdi o traquejo da negociação?


O desagradável ou discordante é excluído, despejado, evacuado do nosso mundo. E isso não recai apenas para a outra pessoa, mas a nós mesmos. Nossas imperfeições são intoleráveis e precisamos performar irretocavelmente. Algo assim, quase sempre, não se restringe ao virtual do nosso mundo, agora é o nosso mundo em si. O escritor Montaigne certa vez foi questionado sobre o motivo de amar um amigo dele “Porque era ele, porque era eu”. Amamos a especificidade, a singularidade, mas em um mundo indiscriminado temos ele? Temos eu?


Qual será o impacto que uma pessoa sofre ao viver dessa maneira? Hiperconectada, hiper editada em seu corpo e vida, hiper mergulhada e hiper off ao olho no olho e a si mesma. Um olhar vidrado, me parece estar hiper, um olhar vidrado perde a sua capacidade de ver, pois está muito ocupado olhando.


[1] Aqui faço referência ao personagem Gollum dos Senhor dos Anéis que tinha uma relação adicta com o “anel do poder”



Psicanalista Jéssica Domingues no evento Uso Abusivo de Telas digitais promovido pela Clínica Psicon em São Caetano do Sul


 

Se esse texto te deixou pensando, e quiser conversar sobre um possível início, você pode agendar uma sessão ou me escrever.

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